quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Nyala: A ONU de visita à igreja

Uma delegação americana da ONU veio à igreja de Nyala. Chegou de surpresa, conversou um pouco com as pessoas e depressa partiu para Cartum. Pela minha parte, fico a rezar para que a pomba branca não perca o rumo nem se canse de voar e chegue ao seu destino: Darfur. E seja um novo princípio: a paz. Unam-se as vontades e a política se purifique de interesses pessoais abusivos de uma tribo, raça ou nação! Ou do mundo inteiro!
«O senhor é o responsável da igreja católica de Nyala?» À minha resposta afirmativa, o representante do protocolo do governador de Nyala perguntou se estava interessado em receber a visita da delegação americana enviada pelas Nações Unidas. Visitas ao Darfur por parte de altas personalidades políticas e diplomáticas sudanesas ou internacionais são frequentes nestes tempos de conflitos armados nesta terra. Mas a surpresa foi grande para mim ao ouvir que a igreja, desta vez, é parte do programa oficial. Quase não tive tempo de responder que sim e nem tão-pouco seria necessário. Porque logo apareceram os três carros diplomáticos no adro da igreja. As pessoas que estavam comigo ocupadas nos preparativos da Semana Santa sentiram pena e desilusão por tudo ter acontecido num momento, sem oportunidade de dar as boas-vindas aos ilustres hóspedes com uma certa dignidade. Quando deram conta viram-se rodeados de uma dezena de pessoas, seis das quais estrangeiras. Quem eram? Qual o motivo deste encontro repentino e inesperado? E as saudações, boas-vindas e salamaleques misturaram-se, entre outras coisas, com as perguntas sobre a guerra e a segurança no Darfur.Quem guiava a conversa era versado na arte de perguntar. E também de responder, no caso de descuido do interlocutor incauto. Situação que os membros da delegação da ONU imediatamente captaram e delicadamente foram tentando remediar. Câmaras fotográficas e de vídeo eram usadas sem problemas. Os dois grupos sabem os objectivos um do outro. Tudo politicamente correcto. Política com política se trata.
O diálogo inter-religioso
A irmã Jean d’Arc, uma missionária de nacionalidade libanesa, juntou-se ao grupo onde o Macur e eu partilhávamos a conversa sobre o tema do diálogo inter-religioso. A pergunta ainda estava no ar. Enquanto a missionária fazia a sua partilha, o tradutor abanou a cabeça, sorriu e disse: «Se não se puseram de acordo de antemão, parece...» Não importa se não adivinhei a intenção desta sua atitude. O certo é que, para mim, coincidir em certas coisas é bom sinal e só nos fica bem. Os seis estrangeiros ouviram, sem problemas, a tradução oficial. «Graças a Deus há gestos bonitos de expressão de uma convivência de respeito e diálogo entre muçulmanos e cristãos. Mas nem tudo são rosas sem espinhos: há algumas dificuldades de ambas as partes.» A conversa ia-se desenvolvendo com uma relativa naturalidade. Por pouco tempo, pois o responsável da visita veio com a sua proposta: o tempo à nossa disposição é pouco; antes de terminar, queiram passar pelo interior da igreja...
O Sr. Joseph K., membro da comitiva da ONU, fez-se de desentendido. Num abrir e fechar de olhos, vejo-o a conversar com quem ele bem queria. Voltei-me para um dos jovens e bastou um cruzar de olhos para, quase instantaneamente, ver a maioria do grupo deslocar-se naquela direcção. Os oficiais sudaneses, já quase à porta da igreja – que seria o suposto término da visita oficial – voltaram para trás e juntaram-se a nós. Admirei o seu poder de disfarce. O ambiente tornou-se um pouco pesado e um tanto mais sério. O que permitiu, não obstante, que não se perdesse uma palavra sequer do que estava a ser dito.
«Ao voltarmos ao nosso país queremos transmitir aquilo que vimos e experimentámos aqui, sobretudo no que diz respeito à segurança das pessoas», dizem. O interlocutor é um sudanês do Sul do país. Aparenta mais de 40 anos de idade (omite-se o nome por razões de segurança), fala o inglês razoavelmente e trabalha numa organização humanitária. Apercebi-me que queria comentar em jeito de resposta, mas esperou pela verdadeira pergunta, que veio logo a seguir: «É verdade que há genocídio aqui no Darfur?»
O genocídio não é aqui
O grupo era todo ouvidos a escutá-lo. Sabemos que as suas palavras põem em risco a sua vida e a de mais alguns. «Agradeço a vossa visita à igreja, se não mais para vos dizermos que não é aqui no centro da cidade que se vêem os massacres e genocídios perpetrados pelos jaunjauid, directa ou indirectamente (através das lutas tribais estimuladas e acicatadas pelos janjauid e pelo Governo). Assim como vossas excelências quiseram vir à igreja católica, queiram também fazer o pedido ao governador de Nyala para se deslocarem às aldeias fora da cidade. Infelizmente, lá não tereis oportunidade de ver muita gente. Em muitas delas não encontrareis mesmo ninguém. Só escombros e alguns ossos que os animais deixaram espalhados. Não será por acaso que na Internet encontrais números como 200 mil mortos e 2 milhões e meio nos campos de refugiados.»
«Com estes carrões em que eles viajam põem-se lá num ai!» – alguém cochichou ao meu lado. É uma das vítimas das razias dos janjauid na aldeia de Khur el Bachar e que agora vive no campo de refugiados de Utach. Quem pôde ouvir, comentou positivamente com um sorriso e um aceno de cabeça. O tradutor oficial não reagiu. Mas, pelo resto, está de parabéns pela fidelidade com que transmitiu na íntegra, palavras e ideias que, à primeira vista, não coincidiriam com o seu esquema mental e patriótico. Entretanto, uma voz soou e desta vez foi obedecida: «O nosso muito obrigado a todos vós por terdes recebido os nossos ilustres hóspedes. Agora é mesmo o fim. Vamos continuar a visita na cidade. Amanhã voarão para Cartum.»
«Com esses carrões em que eles viajam, põem-se lá num ai»? Não. Amanhã voarão para Cartum. E depois de amanhã? Já não faço mais contas. Pela minha parte, fico a rezar para que a pomba branca não perca o rumo nem se canse de voar e chegue ao seu destino: Darfur. E seja um novo princípio: a paz. Unam-se as vontades e a política se purifique de interesses pessoais abusivos de uma tribo, raça ou nação! Ou do mundo inteiro!
Pe. FELIZ DA COSTA MARTINS

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